A problemática dá sentido à investigação
pois nos informa aquilo que o investigador quer pesquisar, nela apresenta-se,
em forma de uma reflexão rigorosa aquilo, aquilo em que o pesquisador se
compromete a resolver.
Exemplo de formulação do problema tirado
do trabalho de Edgar Cajiza sobre a acusação de feitiçaria contra crianças[1].
Nos
dias de hoje, temos sido alertados quer por pessoas quer por órgãos de
informação, sobre um fenómeno; a questão das crianças acusadas de feiticeiras.
São
depoimentos de pais, mães, tios e outros membros da família expondo acusações
contra crianças ou até a explicar os motivos que o justificaram a esmurrar uma
criança, ou seja, o que supostamente a criança fez para acusá-la de feiticeira.
Há
uma série de situações que suscitam um conjunto de inquietações. É que tudo
isso se passa naquela instituição tida como nuclear na sociedade. A família é a
base de toda sociedade, pois que, reproduz e prepara os indivíduos para uma
vida social.
Na
família se inicia o processo de socialização, que nos prepara para as restantes
relações na sociedade e acompanha – nos na formação de uma personalidade.
No
entanto, a sociedade, normalmente, espera que a família seja um lugar no qual a
criança é protegida e lhe sejam garantidos os direitos.
Mas
estas acusações e práticas de maus tratos, têm ainda outros actores, as igrejas
de cura. Em 2008 foi matéria de destaque em toda imprensa nacional, primeiro em
Janeiro do mesmo ano «o drama das crianças acusadas de feiticeiras»: este drama
contava o caso de 12 crianças que haviam sido retiradas das ruas da capital,
pelas irmãs da congregação do Bom Pastor da igreja Católica, porque tinham sido
acusadas pelos pais (ANGONOTÍCIAS, 23-01-2008: Fonte: Rádio
Ecclésia/Apostolado).
No
mesmo ano, mês de Outubro, acontece o famoso caso do «resgate de 40 crianças
feiticeiras em igrejas». Aqui contava-se que a igreja Revelação do Espírito
santo e a igreja Boa Fé, haviam prendido 40 crianças alegadamente para
tratá-las, mas que no fundo estas sofriam torturas e maus tratos. Porém,
através de uma intervenção da administração do município do Sambizanga, esta
rede foi descoberta e desmantelada (ANGONOTÍCIAS, 23.01-2008:Fonte: Lusa).
Do
que se sabe e é histórico, a questão da acusação de feitiçaria, é uma prática
muitas vezes, identificadas como característica das comunidades Bantas[2].
Porém, nessas comunidades, esta questão é debatida ao nível dos adultos e não
contra as crianças, já que as crianças não podem e estão muito distantes de
manejar os poderes místicos (Altuna, 2006; 208-209).
A
feitiçaria nestas localidades é um assunto apenas da competência dos
responsáveis, dos adultos e, os criminosos, também eram adultos, pois se trata
de um crime resultante de um uso indevido de uma força cuja função é defender a
comunidade e não para prejudicá-la.
Por
este motivo, nas comunidades bantas é frequente o sentimento de medo, já que
estes reconhecem a existência de poderes ou seres superiores que regem as suas
comunidades e que muitas vezes podem ser manipulados por pessoas egoístas e
traidores (Altuna, 2006;69-70).
Segundo
o padre Francisco (cit. Friedman e
N´senga 2002:3) existe (nesta parte de Angola) uma aceitação cultural do
facto das pessoas se livrarem da criança numa tal situação. Dado ela ser a
cauda de muito mal. Para nós, os bantu, a vida é o valor primordial (padre
Francisco apud Friedman e N´senga 2002:3)1
avie est la valeur primordiale). E aquele que vem para tomar esta vida, merece
ser excluído.
Logo,
e é consenso, a questão das crianças acusadas de feiticeiras é conhecida como
mais um dos problemas do início dos anos 90, até porque nos tempos passados
este não se fazia sentir (INAC, 2006:18-19).
Contudo,
a justificação cultural que muitas vezes é utilizada para explicar ou defender
as acusações de feitiçaria, não as tornam impunes pois elas acabam sempre sendo
uma clara violação aos direitos humanos e aos direitos da criança.
Ainda que este fenómeno
seja compreendido ao nível de um grupo cultural, ou seja, costume de certo
grupo, pelo facto de englobar violação, tanto no processo como desfecho, em
muitos dos casos, é fortemente condenado e considerado, quer pela sociedade,
pelos Estados como pelos direitos humanos, como um abuso e desrespeito aos
direitos conferidos às crianças *.
Os
direitos da criança, previsto na Convenção dos Direitos sobre a Criança, são
universais, o que valem para todas as crianças, não importando a raça, cor,
sexo, idioma, crença, opinião pública, origem nacional, étnica ou social, posição
económica, deficiência física e nascimento[3].
Assim,
independentemente do lugar onde a acusação, carregada de fogosidade é
praticada, constitui uma violação aos direitos destas, o que, no entanto nos
reforça a ideia de que todo acto que lese a integridade e o direito ao
desenvolvimento da criança, se constituir uma violação a ser susceptível de
repressão[4].
Por
tal situação, constituir-se já um problema social[5],
reconhecemos repousar sobre nós uma responsabilidade de e através de um estudo
trazer em reflexão este problema, cujas consequências são muitas vezes
drásticas quer para os indivíduos estigmatizados como para a sociedade.
No
entanto, porque é preocupante o impacto do fenómeno, procuraremos levantar um
leque de informações, como por exemplo sobre como são ou eram as estruturas das
relações destas mesmas crianças com os outros membros na família, sobre as
quais estas foram acusadas e sobre os restantes membros com os quais estas
crianças viviam.
O estudo se apegará também num
facto político que aconteceu no ano de 2009. Neste ano, o Presidente da
República de Angola fez sair, no Diário da República um despacho, o nº 32,
sobre a proliferação de seitas religiosas e sobre o impacto negativo deste
fenómeno das acusações de feitiçaria.
Este
despacho ordenava a criação de uma comissão interministerial, que dentre
várias, destacamos as seguintes responsabilidades[6]:
a)
Elaborar um estudo sobre as origens e
causas do fenómeno religioso em Angola;
b)
Promover encontros com os líderes das
igrejas reconhecidas e auscultar as suas opiniões no que diz respeito ao
fenómeno religioso, concretamente os conflitos das lideranças religiosas; […] e
e)
Elaborar um estudo sobre o crescente fenómeno de acusação a crianças de prática
de feitiçaria e propor medidas ao governo.
Queremos com isso fazer recordar a
sociedade sobre esta preocupação levantada pela mais alta entidade nacional e
procurar-se-á uma análise sobre a situação do problema actualmente através dos
resultados provenientes desta comissão.
Portanto, e sobre o tema em estudo,
levanta-se a questão: será que toda criança acusada de feiticeira, por vários
motivos evocados pelos familiares, tende a adoptar comportamentos desviantes?
[1]
Trabalho de fim de curso para licenciatura. Cajiza, Edgar de Sousa (2013) A questão das crianças acusadas de
feiticeira: um estudo de caso no centro de acolhimento Arnaldo Janssen. Monografia
(licenciatura em Sociologia) ISCED –
LUANDA, 2013.
[2] Segundo o Pe.
Manuel Imbamba (2006, p 4), sempre que se ver escrito bantos, banto, bantas e
banta deve se ler mesmo bantu, porque estamos presente de uma palavra
inflexionada.
* Pensamos que a
questão cultural nunca deve ser esquecida na análise de determinado
comportamento ou problema social, mas mesmo que depois se conclua se tratando
de um assunto puramente cultural, não deixará de ser uma violação quando esta
maltrata, pois a cultura é sempre boa e principalmente aos seus utilizadores,
mas nada que é cultural é lícito se for um valor contra a vida, ou seja,
nenhuma cultura deve ser contra este valor maior, que é a vida. A relatividade
cultural deve ser tida em conta, mas quando uma cultura mata não é necessário o
autóctone para dar conta da fereza deste comportamento.
[3]
Vide
Convenção sobre os Direitos da Criança. Angola (1989). UNICEF, parte 1, art.º 2
ponto 1, p. 4.
[4] Ver Convenção sobre os Direitos da Criança.
Angola. UNICEF, parte 1, art.º 2 ponto 2, p. 5.
[5] Segundo Rubington
e Weinberg (1995:4) é uma alegada situação incompatível com os valores de um
significativo número de pessoas, que concordam ser necessário agir para
alterá-la. E para que um problema social possa ser considerado um problema
sociológico deve possuir as condições de regularidade, uniformidade,
impessoalidade e repetição (Apud Carmo e tal 2001:27).
[6] Vide Diário da
República nº 188 de 05 de Outubro de 2009. Despacho nº 32/09.
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